Os desafios e oportunidades dos conflitos entre canais

Quando sua empresa cresce, os conflitos entre canais de vendas só aumentam. E esse é um bom indicador.

Por muitos anos, gerenciar conflitos de canais fez parte do meu dia a dia. Nas experiências à frente de marcas como Hope, Scala, Trifil, Puket e, atualmente, Le Postiche, percebi que, quando começamos a expandir os canais de vendas, alguns desafios são comuns ao varejo.

Os canais têm o desafio de reduzir a distância entre o fabricante e o consumidor final, criando capilaridade para garantir a disponibilidade do seu produto por meio de uma cobertura geográfica mais ampla. E se você quer crescer, precisa diversificar esses canais, com a sensibilidade de equilibrar os interesses de todos os parceiros — e os seus — para garantir que um não canibalize o outro e todos trabalhem pela construção da sua marca.

Na prática, a relação do fabricante com os canais de vendas é muito sensível. Na Puket, empresa em que atuei como Diretor Comercial por dez anos, enfrentamos esse desafio de perto. E os aprendizados foram muitos. Quando cheguei à Puket, em meados dos anos 2000, a empresa era uma indústria de meias. Nosso principal canal de distribuição era por meio de representantes comerciais que vendiam nossos produtos em lojas multimarcas, supermercados e lojinhas de bairro.

Na época, atendíamos milhares de PDVs no país, mas éramos uma organização com um mindset essencialmente industrial. Entre 2000 e 2001, surgiu a necessidade de trabalharmos melhor o branding da Puket, construindo uma marca de referência, até para nos diferenciarmos de duas gigantes concorrentes: a Scalina, detentora da marca Trifil, e a Lupo — ambas com capacidade de produção vinte vezes maior que a nossa.

Nasceu ali a ideia de criarmos a loja Puket. Inicialmente, por conta da relação custo x benefício por metro quadrado, pensamos em montar um quiosque; logo descartamos a possibilidade, já que não conseguiríamos mostrar todo o portfólio da marca neste formato.

Apostamos no conceito de lojas franqueadas com open-front, ou seja, sem vitrine, mais convidativas e abertas. O projeto chegou a ser desenhado pelo arquiteto Marcelo Rosenbaum para que fosse um templo da marca, um espaço para concretizar o posicionamento e criar uma experiência singular aos clientes. Se até então, nosso ponto de venda era compartilhado com outras marcas, agora a loja era inteiramente nossa. Uma conquista que fez todos comemorarem!

Todos, menos os revendedores.

Depois de abrir as primeiras lojas, veio o conflito: como as franquias conviveriam com os revendedores sem que um ocupasse o espaço do outro? Era possível criar uma convivência pacífica? Os clientes das lojas multimarcas começaram a entender que eram nossos concorrentes.

Ali percebemos a importância de estabelecer as regras de convivência desde o início; regras de gestão de canal para que esses conflitos não limitassem nosso crescimento, e para que todos os parceiros pudessem conviver melhor.

Em meados de 2010, tínhamos cerca de 100 franquias, posicionadas nos melhores shoppings do Brasil, e 10 mil revendedoras de varejo – lojas multimarcas ou grandes magazines como Renner, C&A, Pernambucanas e Lojas Marisa. Com esse número de parceiros, ficava cada vez mais desafiador entender as demandas específicas e as regras de cada canal. Nunca quisemos fugir dos conflitos, mas sim, melhorar a forma de gerenciá-los.

Sempre acreditei que, se você não tiver conflitos entre canais, significa que não está explorando o mercado no potencial que deveria. É preciso criar uma estratégia para atenuar o atrito entre os parceiros, mas esse é um indicador importante para você saber se está chegando no limite de convivência — e no limite de cobertura geográfica e capilaridade que sua marca é capaz de ter.

Quando você sentir que está cada vez mais próximo desse limite, crie uma estratégia de gestão dos canais de vendas.

Sugiro um passo a passo para começar:

1) Estabeleça a intenção estratégica da marca em cada canal.

No caso da franquia, nossa intenção era posicionar a marca para criar diferenciação. Por isso, trabalhamos o branding e a experiência da loja do jeito como entendíamos que deveria ser, com alto nível de controle dos pontos de contato.

Já os revendedores multimarcas pequenos, as lojas de bairro, nos davam capilaridade. Com os PDVs espalhados pelo país, atendemos do Oiapoque ao Chuí, o que nunca conseguiríamos fazer dependendo apenas das franquias. Porém, o desafio aqui era manter a capilaridade, sem perder a identidade de marca. Isso significou criar formatos diferentes de gôndolas e displays. Desenvolvemos, por exemplo, displays modulares de até 10 metros quadrados, quase como uma miniloja Puket, para magazines locais e lojas de calçado infantil. Também criamos o conceito “Aqui tem Puket” que destacava a marca, em meio a tantas outras.

Um terceiro canal importante era por meio dos atacadistas. A venda por atacado em grandes regiões comerciais como Bom Retiro e 25 de março nos ajudou a alcançar ainda mais lojas multimarcas, algo que nossos revendedores sozinhos não conseguiriam fazer.

Por fim, os grandes magazines, como Renner, Riachuelo e Walmart, nos ajudavam a aumentar nossa competitividade, por meio da escala de produção e do grande volume comprado.

A partir daí, quando você tiver clara a intenção de marca para cada canal…

2) Defina o portfólio de produtos de cada um.

Assim que desenhamos um mapa contendo os nossos canais de venda — e seus perfis –, definimos os produtos que estariam disponíveis em cada um deles. O portfólio comum estaria presente em todos os canais, era a espinha dorsal da marca. Já o portfólio de branding seria encontrado apenas nas lojas franqueadas.

Na prática, dividimos assim:

Franquias – tinham acesso a todo portfólio; lojas multimarcas – 70% do portfólio; grandes magazines – 20 a 25% do total.

Mas, como garantir que o par de meias vendido na loja do shopping e na loja do bairro tenha o mesmo preço?

3) Gerencie os conflitos de precificação.

O mark-up (o quanto do preço de um produto ou serviço está acima daquilo que ele custa para ser obtido) variava de acordo com cada canal. Nas franquias, é de 2,5%, uma vez que o preço é 100% controlado. Já nos grandes magazines esse mark-up cai para 2%, enquanto nos revendedores multimarcas, não temos controle algum.

O que fazíamos era entregar ao revendedor uma tabela de sugestão. Um verdadeiro acordo de cavalheiros. Caso surgisse uma reclamação de que ele não estava seguindo a política de preços combinada, fazíamos a intervenção.

Na prática, os franqueados eram nossos maiores guardiões. Um franqueado de Campinas, por exemplo, descobria que um lojista fora do shopping estava vendendo mais barato. Então, nossa equipe ia conversar com ele, para convencê-lo a mudar o valor, sob pena limite de parar de vender para ele.

Nos magazines, a coisa também não é fácil porque a relação de forças é desigual. Geralmente funciona bem, mas às vezes tínhamos dificuldade em fazê-los cumprir algum acordo. Exatamente por isso, o portfólio é menor.

4) Assuma o papel de regulador.

É fato: conflitos não se evitam, mas se gerenciam. E nós sempre acreditamos na força do convencimento, nunca na do “top down”. Até porque não temos capacidade de agir sobre o mercado de maneira impositiva.

5) Faça a gestão de estoque com planejamento e antecedência.

Para atender a todos os canais sem deixar a mercadoria parada na fábrica, não dá para provisionar o estoque. Você precisa ter certeza do que vai vender, com antecedência.

Nos canais multimarcas, as vendas são de baixo volume e modelos variados, por isso os representantes pegam pedidos com prazo médio de 30 dias de entrega.

Já nos magazines, o volume é muito maior e de poucos modelos. É feito, então, um planejamento antecipado de 90 a 120 dias, dependendo do volume. E a relação com eles não tem margem de erro: se você não cumpre a data de entrega combinada, pode até ser penalizado com multas.

Por fim, os franqueados participam de showrooms trimestrais para conhecer a nova coleção e trabalham com planejamento prévio de demanda.

6) Desenhe metas desafiadoras, mas nunca ultrapasse sua capacidade produtiva.

Em vez de desenhar a meta e depois entender o que precisamos produzir para alcançá-la, fazíamos o contrário. As lideranças se reuniam para entender qual era nossa capacidade produtiva possível, não só de maquinário instalado, mas também capital de giro, recursos humanos, revisando a teoria das restrições e todos os gargalos que tínhamos.

Chegávamos em um número que era de, por exemplo, 15 milhões de pares ao ano. A partir desse volume, tínhamos que entender os sublimites. Meia masculina só posso fazer 1 milhão; de bebê, posso até 7 milhões; na linha feminina, meu limite é 8 milhões…

Com isso desenhado, fazíamos a distribuição entre os canais, formando uma combinação que trouxesse maior margem para a empresa.

De forma resumida, o desenho de metas envolvia limite de produção, capacidade de absorção de cada canal de vendas e margem de lucro do portfólio. Mas, quanto mais combinações surgiam, mais conflitos precisavam ser definidos. Por exemplo: consigo vender um volume maior de meia esportiva para magazines, mas se eu fizer uma meia diferenciada para multimarcas, minha margem vai ser muito maior. O que conta não é apenas o volume, mas sim o volume com boa margem de lucro.

7) Organize seu time para cuidar dos relacionamentos com cada canal.

Na época em que trabalhei na Puket, tínhamos três divisões:

Franquias, onde o Gerente de Operações e seu time trabalhavam ajudando o franqueado com estratégia de vendas para garantir o sell-out, ou seja, para que ele conseguisse vender a mercadoria que comprou de nós.

Multimarcas: onde tínhamos representantes de vendas, gerentes regionais e um gerente nacional, responsáveis pela meta de vendas das lojas multimarcas.

Magazines, com seis gerentes de contas responsáveis pelo relacionamento com as grandes redes. Um deles cuidava da relação com Renner e Riachuelo; outro, de Lojas Marisa e Pernambucanas; outro para Pão de Açúcar e Walmart, e assim por diante.

O exemplo que trago da Puket, vi repetir-se em outras marcas de varejo com as quais trabalhei. Seja qual for o segmento ou tamanho de mercado que você ocupa ou visa ocupar, fique atento também aos três erros mais comuns de quem enfrenta conflitos entre canais.

1) Falta de transparência.

Na Puket, sempre fomos muito transparentes com todos os parceiros. Principalmente, com os franqueados, que sempre souberam quais eram nossas estratégias. Desde o primeiro dia em que pensaram em ter uma franquia, sabiam que existiam multicanais e que nosso compromisso era minimizar os possíveis atritos. Quando você tenta fingir que está tudo bem e não traz as pessoas para a solução, você terá um crítico, e não um parceiro.

2) Estratégia de médio e longo prazo.

A visão da franquia e do multicanal é importante para a empresa no longo prazo; mesmo que, para isso, você tenha que renunciar a uma venda aqui ou ali. Porém, as empresas costumam ter uma visão de curto prazo. Se um grande cliente se coloca contrário a uma estratégia sua, é preciso pesar o impacto disso no futuro da empresa, para que você não se torne refém dele.

Na Hope, por exemplo, chegamos à conclusão de que não queríamos mais exibir nosso produto em magazines e supermercados. Tomamos uma decisão difícil. Desistimos de vender um grande volume para uma grande varejista porque o posicionamento de marca não era saudável usando esse canal. O problema é que, durante uma crise, as organizações passam a pensar no curto prazo.

Certa vez, em uma palestra, perguntaram ao José Galló, da Lojas Renner, o que eles fizeram para crescer em 2016. A resposta: “Não fizemos em 2015 ou em 2016; estamos fazendo há 10 anos”.

A todos os empreendedores, essa é minha maior recomendação: seja qual for a natureza do seu negócio e da estratégia de vendas, olhe para um horizonte maior. E gerenciar os conflitos de canais será parte do caminho de crescimento.

Carlos Eduardo Padula É CEO do Grupo Brascol e da Rede Le Postiche

 

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